Quase tão importante quanto
escolher uma pessoa para compartilhar a cama é saber escolher quem a gente leva
para a cozinha. O que têm em comum? Você sabe: são dois lugares onde o prazer
sempre dependerá da intimidade.
Nessa loucura desenfreada que se transformou nosso dia-a-dia, dividir a mesa com gente desconhecida virou coisa comum. Para outros, até compartilhar a cama com gente estranha ficou normal. E no assunto em questão, amor e compromisso deixaram de ser essenciais para a maioria. Equivalente ao fast food, inventaram o sexo casual, ambos suficientes para satisfazer desejos de forma rápida e prática – dizem – sem envolver nenhum tipo de emoção.

Como boa mineira interiorana, aprendi cedo a gostar da cozinha, numa época em que o fogão a lenha reinava ali, ocupando o centro do salão, enquanto os fornos, feitos de barro, ficavam no quintal. São desse tempo as lembranças dos doces, cujo preparo mais parecia uma festa: colher, lavar e descascar as frutas, buscar o leite na fazenda... Festa que se repetia nos dias de preparar biscoitos ou outra quitanda qualquer. Tudo era pretexto para juntar a vizinhança em gostosas tardes de muitos causos e risadas, as crianças brincando de ajudar em cada etapa, enquanto os adultos iam revelando os segredos de cada comida. “Um tantinho de sal” ali ou “só pode mexer com colher de pau” aqui davam o ponto certo e garantiam o gosto bom de tudo o que saía dali. Ainda dá água na boca!
Dessa época ficou o gosto pela cozinha. Não aprendi a preparar nenhum prato impressionante, mas sei do prazer que é juntar alguns poucos e bons amigos na cozinha para um preparo qualquer. Descobri que é necessário atingir certos níveis de afinidade e cumplicidade antes de dividir a cozinha com alguém. Assim como no amor, existem linguagens específicas na cozinha, e quem por lá se aventura deve saber decifrar os desejos do outro. É preciso entender os olhares, se dispor a experimentar outros sabores, confiar na sugestão de novos temperos, revelar alguns segredos... O resultado nem é o mais importante; a graça está na conversa e nas risadas que se encaminham espontaneamente enquanto a gente vai bebendo isso ou provando aquilo, até acertar o ponto. Como disse o Guimarães Rosa, nem na partida nem na chegada, mas na travessia: aí mora o prazer de cozinhar a dois. Ou três ou quatro, a depender do nível de intimidade entre eles.
Herança da mesma época, permanece comigo a alegria de receber os amigos em casa, numa tentativa de exercer a cultural hospitalidade mineira; engraçado é que nessas situações sempre sou presenteada com momentos mágicos, alimento para o coração, que apesar de não dependerem da cozinha para ficarem prontos, frequentemente fazem dela seu cenário. Nessas ocasiões a refeição à mesa é uma celebração coletiva, forma de dizer que alguém é aceito e bem-vindo ali e que a simples presença do visitante já alegra a casa.
Acontece que na mesa só chega o produto final, com cara bonita, pronto para arrancar exclamações antes e enquanto é saboreado. É nos bastidores da cozinha, em meio ao calor do fogo que a magia acontece e as coisas gostosas surgem... Também é ali que ficam as feiúras de grandes pilhas de louça por lavar, de cascas e cacos, de fogão e forno engordurados – feiúras que só devem ser expostas diante de quem a gente já sabe que não vai sair correndo quando enxergar as imperfeições...
Cozinha é ambiente reservado aos íntimos. Estive lá hoje preparando um bolo para presentear umas pessoas especiais. E na solidão da casa numa tarde de muita chuva desejei ter alguém para dividir as tarefas de cortar, bater, temperar e experimentar. Com esse desejo veio uma saudade danada dos amigos que em outros tempos vinham, às vezes só pelo prazer de cozinhar em pequenos grupos. E o que quis escrever, na verdade foi um convite, que se estende a cada um de meus amigos; aos mais íntimos: apareçam para uma tarde de experimentos culinários. Aos recém-chegados: um café e uma prosa são ótimos começos de amizade. E tudo pode ir parar na cozinha.
Como sempre adorei, sua palavras me fazem experimentar as sensações do tempo passado e me lembrar das tentativas de cachorro quente... Valeu!
ResponderExcluirTentativas não, Paty! Eram cachorros-quentes muito dignos, que salvavam minhas tardes! E sim, lembrei-me de você quando escrevi! Beijos;
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