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21 de nov. de 2011

Sobre alegrias quase extintas


Cruzei a ponte. Pronto! Meus pés tocam outra terra; aqui já é outro mundo e dele não há vestígios lá nas bandas de onde venho.




As cores são diferentes, os cheiros e sons são outros. No lugar da estrada de terra agora é o asfalto que atravessa o Cerrado. Por um lado diminuiu o tempo da viagem e aumentou a velocidade, obrigando os olhos a um pouco mais de atenção para captar as inúmeras formas de vida ao longo do caminho. Em contrapartida, serviu para manter e quem sabe até realçar o verde desse mato, antes camuflado pela poeira. Posso garantir que essa cor nunca foi tão vibrante.

Cada trecho da estrada desperta algumas memórias, especialmente nos últimos quilômetros. Voltam boas imagens dos fins de tarde na ilha, namorando o pôr-do-sol, fazendo planos e jogando conversa fora. E também os longos passeios de bicicleta com os amigos, às vezes só pelo prazer de chupar jabuticaba no pé, lá na beira do rio... Em uma dessas tardes a volta foi só de risadas, debaixo de uma chuva daquelas, cobrindo de barro as pessoas e bicicletas.



Quem diz que o Cerrado é seco e sem graça deveria vir vê-lo agora. Os pequizeiros carregados de frutos, as flores da cagaiteira – que nada devem à cerejeira – e do murici exalando seu cheiro doce, as mangabeiras, o jenipapo, o jamelão...

Ao avistar a torre da igreja e as primeiras casas já se sente o perfume da época: é que as chuvas abriram a temporada de mangas, e o cheiro da fruta madura se espalha com o vento. Fruta arengueira, papai diria. De todos os tamanhos e variados formatos e cores, as mangas fazem a alegria de periquitos e maritacas que trazem para as ruas sua barulhada.


Os micos, que no tempo de seca vinham para as casas fugindo das queimadas, pedindo abrigo e comida, agora fazem visitas breves. Deve ser por gratidão que vêm exibir os novos filhotes do bando e logo somem no mato, onde agora há frutas à vontade.

E os sapos – meu Deus, de onde vêm tantos? Feios e desengonçados, brotam aos montes sabe-se lá de onde e invadem as ruas. Fartam-se daqueles insetos que são atraídos pela luz e logo que perdem suas asas transparentes tornam-se alvo da língua esperta da sapaiada. Metidos a músicos que sempre foram, reúnem-se em qualquer poça d’água e, especialmente à noite soltam sua voz grave e esquisita que em bando resulta numa cantoria milagrosamente afinada. Seria uma serenata? Encantados? E as moças ainda a procura de príncipes...

Lá no quintal, longe da luz da rua acontece outro espetáculo, esse sem sons, mas de uma delicadeza comovente, protagonizado pelos vagalumes que se revezam num sincronizado balé de luzinhas verdes. Chega a parecer uma extensão do céu, que aqui, acho, tem um tanto a mais de estrelas que os outros lugares. Aproveito para registrar aqui um pedido: por favor, não substituam os vagalumes pelas luzes de Natal! Notei que mal chegou novembro e já são milhares de micro lâmpadas piscando em toda parte. Prefiro a luz própria dos vagalumes.

Para evitar que os dias chuvosos sejam cinzentos, monocromáticos, as árvores exibem seu novo visual desde que chegou a Primavera; por todos os lados estão floridos os flamboyants (e acho mesmo que não existe vermelho mais bonito!), as sibipirunas e aquelas outras de nome que ainda não sei, cujas florzinhas amarelas pendem em grandes cachos substituindo por completo as folhas. E atraem aos montes os beija-flores, borboletas e abelhas, além das cigarras, que encontram ali o palco de seu musical estridente, religiosamente repetido a cada fim de tarde.

No linguajar local “ponho assunto de capricho” nas árvores. Paixão antiga e ainda crescente. Ora, veja se não são uma completa experiência de sentidos: folhas fazem sombra e aliviam o calor escaldante; flores cheias de cores, beleza e perfume alegram os olhos e instigam o olfato. Frutos de todas as texturas e sabores para apurar o tato e agradar a todos os paladares. Não satisfeitas, as árvores ainda produzem sementes para garantir a renovação do ciclo. Mas o mais impressionante acontece quando elas fazem tudo isso simultaneamente; estão assim o pé de acerola e o de tamarindo: têm ao mesmo tempo folhas novas, frutos verdes e maduros e ainda um tanto de flores.

Perdoem-me, mas não posso crer na competência do acaso para tamanha produção. Insisto que esse espetáculo evidencia a presença constante do Criador, atraindo-nos a atenção enquanto diz: “Vê? Fiz tudo isso para você!”

Mais do que um prazer, voltar aqui periodicamente é para mim uma necessidade. Se puder comparar-me a uma árvore, não importa a que altura cheguem os galhos, é preciso saber o valor das raízes. Raízes simples, porém profundas, capazes de buscar sustento e manter o brilho da vida mesmo em tempos de rigorosa seca.


Baterias recarregadas pelo contato dos pés descalços com a terra
Corpo revigorado pela mistura de cheiros e sabores
Mente limpa graças às belezas oferecidas aos olhos e ouvidos
Pulmões purificados pelo ar leve e fresco
Coração transbordando de amor incondicional – Sim, aqui estão minhas fontes!
Pronto! De novo pé na estrada, de volta à cidade e à rotina, com novo fôlego para continuar. Agora já sei que a felicidade não está em extinção. E como é bom lembrar!


13 comentários:

  1. Lindo Quel!!! Sabe q sou seu fã neeeh????

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  2. Luciana Ferrari22/11/2011, 13:48

    Poxa,muito bonito Raquelzinha. Não sei se sou tão sensível a ponto de perceber cada detalhe assim, mas fica uma lição: os detalhes fazem a diferença. Parabéns pelo texto. Adorei!

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  3. Rafa, obrigada! Meu fã tanto quanto eu de você!

    Lu, mas essa é a idéia do texto: mostrar a beleza dos detalhes despercebidos de todos os dias. Obrigada!

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  4. Que lindo Raquel, da ate pra imaginar esses momentos através dessas suas palavras bem expressadas. Amei!!

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  5. uahau!!
    Prosa mais bonita e gostosa de se ler.
    Bem construída, parafraseada e pontuada
    com as impressões da alma, sensível e doce.
    Vem de uma menina abençoada, com um belo
    sorriso, que vem do coração palpitante da Graça.

    Paz, minha querida!
    Amei o Seu Jardim...
    onde floresce suas impressões
    nos dando o sabor das frutas mais doce.

    *Lisa Köe

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  6. Moça, que treim bunitu oce feiz minina. Não é de graça que te amo. Mateo, seu fã.

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  7. Parabéns pelo blog, Raquel! Menina, você escreve bonito, hein! Tá certo que a paisagem ajuda, mas você escreve bonito demais. Me avisa quando tiver postagem nova, tá? Beijos!

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  8. Carla, que honra! Será um prazer compartilhar as novidades com você. Beijos!

    Lisa, amei seu comentário! Tão doce...

    Keise e Mateo, conseguiram identificar lugares comuns aí? Estou feliz por terem gostado... Beijos!

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  9. A paisagem fica melhor ainda no texto. O relato é uma paisagem em si. Bonito!

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  10. Lendo seu texto, eu me vejo chegando nessa nossa Terrinha amada. Obrigado...

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  11. Verdades que ficam bonitas quando a gente escreve com o coração...

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  12. Ah, e gostei do Terrinha com T maiúsculo!

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  13. Que lindo seu texto!
    De uma delicadeza e suavidade... Ao mesmo tempo com uma força que nos transporta no decorrer da leitura. Me senti no cerrado e cheguei a sentir o cheiro e o sabor dos frutos.
    Bjo.

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